segunda-feira, janeiro 08, 2018

vias de fato

Havíamos ido visitar um ex-professor da faculdade que estava se divorciando portanto vivia muito solitário e gostava de nós, os desajustados. Janaina se ofereceu para nos levar de carona, então em seu carro fomos eu, o impronunciável, Alice, Denis e Janaina guiando, é claro.
Foi uma noite agradável, depois de tanto tempo sem sair juntos, ainda éramos os mesmos desgraçados da cabeça de sempre, mesmo faltando Vinicius que àquela altura já havia se mudado para o interior estudar Filosofia. Roger já não fazia mais parte do bando, e eu e João tínhamos ficado meses brigados sem ao menos conversar, fingindo negar a existência um do outro, as pazes era algo recente, fresco batendo em nosso vazio interior que outrora era preenchido pela presença do outro. Mas essa parte da história fica para outro dia.
O objetivo dessas histórias todas é retirar da minha mente qualquer alusão a pessoa a quem eu me refiro como impronunciável, que para quem acompanha a série "Janeiro" o nome já foi revelado, e tacar no papel este monte de besteiras ricamente insignificantes.
Pois bem, nem preciso mencionar que eu seguia apaixonada, pouco mais de um ano depois de tê-lo conhecido, de ter formado o grupo de amigos da faculdade, etc. Eu me sentia a mais imatura do grupo e talvez fosse mesmo.
Na volta da casa do professor, já de madrugada, eu tive dó de fazer Janaina viajar 25 km São Paulo a dentro só para me deixar em casa e a pedi para me deixar no centro de São Paulo. Não prestei atenção direito e vi que outra pessoa pediu o mesmo a Janaina, eu já estava meio alta de gim tônica e distinguir vozes nunca foi uma qualidade minha.
Quando eu só podia ver as luzes traseiras do Celta da Janaina me deixando na Consolação é que me dei conta de que estava a sós com João. Sem transporte público para voltar pois eram 2h da madrugada. Sem dinheiro vivo, sem caixas eletrônicos 24h por perto. Ventando bem frio em pleno mês de junho e eu estava sem qualquer blusa mais grossa.
A vontade era chorar, sentar na calçada e verter lágrimas sem fim, mas João estava incansavelmente bem humorado. Resolvemos beber num boteco ali perto.
E bebemos uma Maria-Mole. Duas. Três. Depois um Rabo-de-Galo como saideira e rumamos para uma praça perto dali onde o vento fazia um "zum" interminável.
Eu tremia quase que automaticamente, não sentia frio mas não conseguia fazer meu corpo parar de tremer. O termômetro de rua indicava 11 graus. De repente, em uma daquelas ideias idiotas típicas de bêbados, eu pensei em me declarar para João naquela noite. Ora, já havia meses que eu estava sofrendo aquele desejo que me queimava por dentro como uma grande chama no meio de uma noite longa e fria, tal qual aquela que vivíamos.
Falávamos banalidades, sobre jogos, sobre mulheres, sobre musica, sobre nosso futuro na profissão que escolhemos, e então sem me lembrar exatamente como, João deu de falar sobre seu pai.
Acontece que o pai de João possivelmente havia sido um canalha. Abandonou a mãe ainda grávida, casou-se muitas vezes depois com mulheres jovens que ia trocando conforme elas envelheciam. Quando adquiriu câncer de pulmão, veio procurar João dizendo que se arrependeu de ter sido um pai ausente. E o impronunciável caiu nessa, carente de pai que era. E quando estavam se conhecendo e indo tudo bem, o pai morreu.
João era o pior orfão de pai que eu conheci. Desatou a chorar e falar de seu velho, e eu que antes de tudo era sua confidente, ouvi e consolei a perda que era recente, mas não tão recente quanto nossa amizade. E desisti de me declarar, naquele momento comecei a reconsiderar o porquê havia me apaixonado por João.
Bom, se fosse fácil descobrir o motivo, nada da nossa história haveria acontecido, tampouco estas histórias tolas ladras de tempo.
Um rapaz passou vendendo brigadeiros e eu na maior inocência, comprei uma para cada um achando que chocolate daria um jeito na nossa bebedeira (na realidade, na bebedeira de João, o dramalhão dele havia cortado meu barato). Devoramos os brigadeiros e uma chuva torrencial caiu. Corremos para nos esconder dela através de uma ladeira, descíamos quase junto com a chuva que formava pequenas quedas no meio-fio. Encharcados, começamos a rir muito, a sensação era de estar numa montanha russa, a rua dançava diante de nós, o chão fazia ondas igual uma praia. Uma praia de chuva, escuro e frio. Rimos muito enquanto descíamos a rua na chuva e quando finalmente encontramos uma marquise para nos esconder, João me beijou. Me prensou na porta fechada de um estabelecimento, me deu um beijo tão profundo que alcançou minha alma. Eu explodia de felicidade, um minuto que eternamente em minha lembrança durou anos do mais sincero reflexo da felicidade. E desejo, e meu corpo transformado em pura tremedeira, pernas completamente bambas, mente atingindo o nirvana da satisfação amorosa.
O beijo acabou, a noite virou manhã que viramos comendo salgados numa padaria.

Algum tempo depois, eu perguntei para João desta noite sem mencionar o beijo.
Ele disse que não se lembrava de nada, a ultima coisa em sua lembrança era que ele chorou e eu havia comprado brigadeiros.

Malditos brigadeiros de maconha.








***esta crônica faz parte de um conjunto de crônicas que tratam dos mesmos personagens, todas identificadas com o marcador "Janeiro"***