quinta-feira, outubro 06, 2016

Cavalo Manco


Eu estava levando um alicate de unha para afiar numa perfumaria, quando ouvi uma voz que puxou de dentro de mim uma série de lembranças. 

Vi um cabelo loiro a minha frente. 

Me lembrei do dia que a dona daquele cabelo loiro desmaiou na escola do ensino médio que estudávamos. Estávamos prestes a apresentar um seminário de biologia na escola, mas ela não havia estudado, então ficou nervosa e desmaiou, ou fingiu um desmaio.
A conheci no caminho de volta da escola, no ônibus que por sinal era o mesmo, mas eu descia no começo da linha e ela no ponto final. Eu perdi meu cartão de passagens do ônibus e ela achou e o guardou. Tinha 500 reais de créditos lá, daria pra ela usar e economizar o ano todo. Mas ela me achou e devolveu o cartão. Viramos amigas. 
Nos intervalos das aulas, saíamos para comer lanche na cantina. Raramente Dani tinha dinheiro para pagar, então sempre dividíamos um salgado. 
Ficávamos numa mesa observando os rapazes passando, pensando e comentando sobre quem seria legal, quem seria chato, quem era bonito, quem não era. Tínhamos o mesmo olhar. 
Antes de ir embora, almoçávamos a merenda da escola. Compartilhávamos a salada. Falávamos de boca cheia uma com a outra e ainda faziamos guerra de arroz no meio do refeitório, desse jeito conhecemos muitas pessoas que queriam participar da diversão e logo éramos um grupo. 
Mas mesmo no grupo, sempre prevalecia eu e Dani, sempre dentro dos ônibus de tênis destruídos, pé em cima dos bancos, ouvindo rap ou funk e falando muito palavrão. 
No começo eu não era assim, era retraída e calada, séria. E Dani era dorminhoca, quieta, chegava a parecer melancólica. Só que quando estávamos juntas, parecia que algo dentro de mim acordava, algo realmente muito íntimo e alegre. Ou então uma revolta ao mundo como ele era, compartilhada com ela. Parecíamos um par da mesma pessoa. 
Dani gostava de um grupo de forró muito famoso na época, chamado Calipso. Perto da minha casa havia um grande poster do Calipso que ela sempre que via pendurado na papelaria, brilhava os olhos. 
Em seu aniversário, apareci na escola com o poster e a presenteei. 
Havia um rapaz que pegava ônibus conosco todos os dias. Ele tinha uma barba no queixo, um sorrisão bem claro e alegre e um olhar misterioso que eu amava. Era moreno, forte, musculoso, gostava de bandas que eu gostava. Dani sabia dessa minha queda pelo rapaz, e ele nem ao menos olhava para mim, mas falava com ela. 
No meu aniversário, na saída da escola, Dani me deixou sozinha no estacionamento da escola onde o rapaz apareceu e me puxou num beijo. Meu primeiro beijo. 
Mas ela tinha um problema muito grande com aprendizagem. Tentei ajudá-la de varias formas mas ela repetiu de ano. E na segunda vez que ia repetir de ano de novo, seus pais a tiraram da escola. 
Nos afastamos drasticamente. Comecei a namorar o rapaz do primeiro beijo. 
Soube que Dani engravidara algum tempo depois. 
"Oi Ingrid". 
Oi Dani, minha amiga. 


SEGALL - "Duas amigas" - óleo 1914

Nenhum comentário:

Postar um comentário