segunda-feira, dezembro 05, 2016

Rua Apagada

João tinha ido num chá-bar com a noiva naquele mesmo dia um pouco mais cedo. 
Ele a acompanhava em tudo agora, um medo tremendo de perder a moça. 
A noite fomos no Moço-Bar, o bar que tinha na porta do meu prédio e que a gente não tinha o menor interesse em saber o nome de ninguém, estabelecimento, garçom, caixa, nada. A gente levantava a mão e falava "Moço", logo apareceria um rapaz de sorriso fácil e mãos hábeis para nos servir um chopp gelado e um pratinho de azeitonas. 
Então, na noite daquele dia de chá-bar do João e da Bárbara, fomos no Moço-Bar. 
Estava tranquilo. Mas a noite seguia gélida, ou era eu que volte-meia me sentia mais friorento e sensível que o normal. Lembrava da minha pequena, lá do outro lado do mundo naquele lugar cheio de gente fria como a própria terra e ficava assim, com um nó na garganta achando que estava fazendo errado em deixá-la tão longe do nosso povo quente morando com a mãe. Da ultima vez que falei com ela, na manhã daquela mesma noite, estava eu dentro de um ônibus sentado num banco e a moça ao meu lado não parava de reclamar das minhas pernas abertas. 
Disse tchau a pequena e já logo ralhei com a moça do lado "não dá pra fechar as pernas não moça, se quiser troque de assento". A moça trocou, o ônibus não estava muito cheio. Anotei mentalmente de que nas próximas vezes iria de metrô para a casa. 
Contei pro João dessa moça, ele disse que fui rude. João era assim agora, desde que noivou. Tudo era questão de ser rude com as mulheres. João só faltava ter vagina, por causa das coisas feministas que Bárbara andava falando na cabeça dele. 
Eu via bem a cara dela sobre mim, quando entrava em casa, parecia estar entrando numa cueca usada. Tudo lavava, tudo queria limpar antes de usar. Boa gente, engraçada, mas muito moderna pro meu gosto. 
De manhã, quando consegui falar com minha pequena, voltava eu de um café da manhã vegano com uma garota.
Sim, eu fui a um encontro. Nem eu mesmo acredito que tive paciência de ir a encontro qualquer. Mas eis que conheci uma rapazinha muito arisca nas redes sociais e havia dias que não largávamos o papo. Ela disse qualquer coisa sobre não saber comprar mel orgânico e eu me ofereci para orientá-la numa feira orgânica no Santa Cecília. Aí tomamos café e na despedida, eu quis provar o sabor dos lábios de mel da menina. E depois fiquei pensando nela no caminho, como era jovem e decidida e doce. Então quis falar com minha filha e liguei. 
Estava bem, mas mal falava português. Senti ódio da mãe, a vaca que não ensinava português para a criança. Não sabia falar "caramelo" sem aquele sotaque alemão. Perguntei de Alice, falou que tinha ido ao supermercado. 
Todas essas vaginas na minha vida, tão difíceis de lidar. 
"Lide com um pau então, cara" disse o João. 
Então por um minuto entendi a cara que Bárbara fazia quando entrava na minha casa, e rimos. Observei a rua em frente ao bar. Toda apagada. 
Pensei que há século os homens já faziam isso, de se reunir depois do trabalho ou aos fins de semana para jogar conversa fora ou para falar de negócios - de acordo com a classe social dos membros. Tomavam cachaça, cerveja, vinho, falavam de suas vaginas como se elas fossem suas, como eu mesmo havia feito.
Na mesa do lado, quatro moças davam risada e tomavam uma torre de chopp de vinho. Pensei na mocinha do café da manhã daquele dia mais cedo e não tive muita vontade de cortejar as moças da mesa. Mas notei João sem aliança e sem desgrudar os olhos de uma morena.
Pensei o quanto para nós, João e eu, aquilo era normal. Ir pro bar sem nome, beber sem nenhum motivo especial e cortejar mulheres. 
E pensei que em uns tantos anos atrás não veríamos uma mesa só de mulheres fazendo o mesmo. 
Fiquei feliz, mas aquela rua apagada logo a frente me dizia uma coisa, me dizia que embora elas pudessem ser livres para sentarem no bar bebendo e comendo tremoço, elas jamais poderiam passar na rua apagada da mesma forma que eu ou João. 
Pensei na minha filha. De certa forma, o fato dela estar na Alemanha com sua mãe me confortou. 

Mesa de Bar - João Werner 05-07-08


terça-feira, outubro 11, 2016

O Amor nos tempos do câncer

DIA 1
O funcionário novo era muito estranho, o Valter. Ele estava sentando ao meu lado, nossas baias eram do tipo grandes e separadas por uma pilha de pastas apenas. Se ele virasse para trás, conseguiria ver tudo o que eu fazia em meu computador o dia todo. Podia me vigiar.
Eu não gostava dele. Ele parecia ser velho mas ao mesmo tempo, jovem. Ele não falava claramente, sempre sussurrante e fazendo falsetes, usando palavras em desuso. Ceroula, carraspana, chumbrega, fuzarca. Parecia ter engolido em dicionário de 1920. Fiquei incumbida de treiná-lo. Ele faria dupla comigo.  
Em nosso primeiro contato, ele parecia arredio, irritado. Até sorria, mas parecia estar na defensiva. Tinha muita dificuldade em se concentrar. Não era totalmente ignorante sobre o trabalho, embora tivesse vindo de uma outra área diferente. Ensinei algumas coisas básicas pela manhã e voltei para minha mesa achando que ele não havia aprendido nada, e que ficaria perdido o resto do dia.
Havia uma pilha de pastas com documentos que ele deveria analisar e preencher algumas planilhas. Três horas depois de ter lhe passado a tarefa, ainda não havia feito nem um terço. Como era o seu primeiro dia, dei-lhe mais tempo. Fui para uma reunião que durou 1h20. Quando voltei ele havia terminado. “Alguma coisa aconteceu aqui”, pensei.
No almoço, pouca conversa. Parecia longe, disperso.

DIA 4
Valter chegou 20 minutos atrasado. Parecia ter vindo correndo. Disse que ficou preso no transito local. Semblante pesado, parecia não ter dormido. Antes dele chegar lhe deixei outra pilha de documentos para analisar e digitalizar em seguida. Quando chegou, sem que houvesse qualquer explicação, se pôs a fazer o trabalho exatamente como eu teria lhe instruído. Fiquei surpresa. Brinquei “temos um Valter Mercado aqui na empresa gente” e ele riu, aquela risada  chata de criança birrenta, três tons acima da sua voz normal que já era fina. Eu odiava aquilo.

DIA 8
Valter chegou 30 minutos atrasado, como se estivesse correndo, justificou que era o transito e saiu para tomar um café com o celular na mão, ficou 15 minutos fora. Eu não era sua supervisora. Não cabia a mim dar broncas. Mas tanto eu quanto as demais pessoas da equipe olhamos com o olhar de desaprovação, igual quando alguém tomava um copinho de caipirinha antes do almoço no restaurante que frequentávamos e que oferecia antes do bufê. Estava desenvolvendo as tarefas muito bem, mas ainda me passava a imagem de estar perdido, confuso e inseguro.

DIA 11
Valter chegou incríveis 60 minutos atrasado. Não me deu justificativa. Chegou com ar cansado, com poucas palavras. Trabalhou o dia todo quieto. Eu estava irritadíssima, conforme seu treinamento avançava, mais nos consolidávamos como dupla, que era o formato usado naquela empresa. Eu tinha uma dupla que chegava atrasado, estava sempre cansado, não passava segurança, não dava justificativas!

DIA 20
Valter segue chegando atrasado. Reportei a nossa supervisora ontem. Hoje quando ele chegou 1h atrasado, a supervisora o chamou para uma reunião. Ficaram muito tempo lá e eu não sei o que aconteceu. Teremos um evento corporativo daqui cinco dias e eu preciso de uma dupla, não temos tempo hábil para treinar outra pessoa, portanto Valter não pode ser demitido.

DIA 22
Valter chegou apenas 5 minutos atrasado. Mas falou no celular de manhã com uma tal de Deise por uns 40 minutos, dava instruções bem específicas falando baixo naquela voz irritantemente aguda. Ele não havia cortado o cabelo desde que entrou na empresa e agora estava um estilo meio Luiz Caldas. Completamente detestável. Ontem no almoço, até que conversamos. Ele era budista, por isso estava sempre tão conformado. Ele tinha olhos verdes. E tinha uma cicatriz profunda e feia no ombro, resultado de um acidente de carro. O acidente tinha cortado ao meio o futuro que tinha como lutador de jiu-jitsu, uma vez que reduzira os movimentos do ombro. Eu seguia surpresa.

DIA 26
Ontem tivemos o evento que foi em Santos. Valter chegou 15 minutos atrasado, mas deu tudo certo. Na volta, numa van alugada pela empresa, Valter cochilou pesadamente sobre meu ombro. Eu tinha todos os motivos do mundo para esbravejar, me chacoalhar e empurrá-lo para longe, mas deixei ficar.

DIA 30
Valter não veio trabalhar, não deu justificativa. Achei muito curioso que a postura que nossa supervisora tenha com ele seja tão complacente, com qualquer outro funcionário da equipe, ela teria no mínimo dado algumas advertências verbais. Fiquei o dia todo curiosa querendo saber o que raios fez Valter faltar. Comecei a suspeitar de que talvez seus atrasos não fossem relaxos ou transito.

DIA 37
Valter alegou para mim estar fazendo um tratamento e que por isso teria que sair duas horas mais cedo, e que havia combinado com nossa supervisora. Tinha olheiras. Estava sempre com ar confuso, perdido. Eu gostava de conversar com ele. Tínhamos gostos muito parecidos, cultura pop japonesa, gastronomia, política. Nem lembrava mais de odiar a risada infantil, o cabelo de Luiz Caldas e sua baixa estatura, que em algum momento anterior me irritou.
Mas eu queria saber o que realmente estava acontecendo. Pensei que talvez ele tivesse usando drogas.

DIA 42
Valter estava com o rosto completamente inchado. Demorava 30 minutos no banheiro sempre que ia. Eu tinha quase certeza que estava usando drogas. Mas gostava quando puxava algum assunto e ele parecia uma Wikipédia Humana, destrinchando tudo para mim. E ele falava japonês fluentemente.

DIA 47
Valter chegou usando uma camisa abotoada errado, cabelo preso num mini rabo-de-cavalo. Perguntei quando ele iria cortar o cabelo, fez um muxoxo. Estávamos aos poucos ficando íntimos. A barba também estava por fazer, mas achei bonito assim, másculo.
Quando queria algo, chegava igual uma criança sorrateira e dava um puxãozinho no meu cabelo. Eu seguia o chamando de Valter Mercado. No almoço, ele fingia adivinhar o prato do dia. Ele era muito engraçado e estava sempre tranquilo embora cansado. Tínhamos outro evento dali alguns dias.

DIA 53
Valter chegou 3 horas atrasado, abatido, devorando um pacote de bolachas, roupa amarrotada e cabelo preso feiamente. Barba de mendigo.
Fiquei irritada na mesma hora. Pedi que não fosse no evento comigo mal arrumado deste jeito. Teríamos muitos clientes lá e não achava uma boa ideia. Dessa vez era em Campinas, ele ficou e eu fui sozinha.

DIA 54
Valter não veio trabalhar. Perguntei a minha supervisora o que houve, se teve justificativa, ela disse que era pessoal. Então minha suspeita sobre ele estar usando drogas estava cada vez mais forte. Senti pena e raiva. Um cara fantástico como ele, se condenando.
Pedi saída do trabalho no almoço, avisei que não voltaria. Liguei para Valter várias vezes, queria uma intervenção. Na 34ª chamada, Valter atendeu, a voz meio fina estava quase sumida. Disse que estava a caminho de sua casa. Ele implorou que eu não viesse. Então pedi para ele me receber no portão pelo menos, porque eu precisava falar.
No portão de uma casa grande e antiga, caindo aos pedaços, veio Valter de camiseta branca simples, com uma grande mancha escura. Calças de moletom, chinelos de dedo, cabelo preso. Olhos – verdes – com olheiras fundas. Mas o que me deixou mais impressionada eram as marcas de mordida no braço.
“Você ta usando drogas? ”
“Não”
“Você chega atrasado e quase sempre mal arrumado, você fica muito tempo no banheiro, e muito tempo falando com alguém sobre remédios no celular, todos os dias. Você precisa de ajuda, pode se abrir comigo. O que você está usando? ”
“Eu não estou usando drogas, não preciso de ajuda”
“O que são essas marcas de mordida no seu braço? Você está acabado! O que é essa mancha na sua camiseta? ”
Eu estava alucinada, todos os sinais possíveis de usuário de drogas estavam ali.
“Porque não quer me receber em sua casa? Deve ter uma carreira de cocaína em sua mesa né?”
Ele suspirou alto. Olhou bem para meus olhos e eu fiquei meio constrangida.
“Entre”.
A casa grande tinha uma sala na parte da frente por onde entrei. Tudo estava apagado, abafado e com cheiro de mofo. Só conseguia vislumbrar os móveis. Silencio modorrento, entramos num corredor que dava para um quarto no fim, de onde eu via uma luz fraca de abajur. No quarto, uma cama de casal no centro, e uma pessoa depositada ali. Um balde exalava um cheiro acre enjoativo ao lado da cama.
Valter estava a minha frente, se aproximou da cama e puxou um cobertor que escondia quase totalmente a pessoa na cama.
“Pai, essa é a Patrícia, veio nos visitar”
A pessoa que Valter se referiu como “pai” não se mexeu. Nem ao menos olhou. Parecia ter tido o sangue sugado e a pele colada junto ao osso. Esquelético e frágil. Careca, boca semiaberta, não consegui ver muitos detalhes. Estava surpresa demais. Era esse o segredo então.
O pai soltou um som alto e agonizante.
Num minuto me lembrei de todos os momentos que Valter me parecia distante, cansado, confuso, preocupado, pensando na morte da bezerra. Pensei em todos aqueles atrasos, e todas as faltas, da cumplicidade de nossa supervisora que provavelmente sabia de tudo.
Estava em prantos.
“Meu pai tem um tipo raro de câncer já faz 4 anos. Minha mãe cuidava dele enquanto eu trabalhava mas faz seis meses que ela faleceu de um infarto espontâneo. Não tínhamos dinheiro para interna-lo, mal tínhamos dinheiro para comer e comprar os remédios, então combinei com a vizinha dela olhar meu pai enquanto eu trabalhava. Mas havia uma série de cuidados que tenho que prever. Comida, banho, remédios que você nem imagina. Ele não vai aguentar muito mais, mas ainda é meu pai.”
Eu o abracei. E estava apaixonada por ele. E queria cuidar dele, dar descanso e carinho.

DIA 56
Assinei meu papel das férias. Fazia 3 anos que não tirava férias. Era cedo ainda. Fui informada que Valter faltou novamente. No dia em que estive em sua casa, ele disse que acreditava estar perto do fim.
Levei muita comida para eles, fui recebida por um sorriso cansado, mas bem satisfeito. Era como se eu sempre tivesse que estar ali. Fiquei o dia todo, limpando a casa, conversando e rindo com Valter. Era incrível que mesmo sob aquelas condições, ele ainda podia ser tão maravilhosamente bem-humorado.
Então lhe contei que estava apaixonada por ele. Estávamos no quintal, estendendo uns lençóis. Ele riu, não acreditou muito.
“Não estou em condições de ter uma vida própria agora”.

DIA 58
Ontem pela manhã, o pai de Valter finalmente descansou na eternidade.  Soube que era alcoólatra, violento e mulherengo antes de ficar doente. Valter me contou isso com muito pesar, com vergonha. Eu o beijei. Consolei, cuidei.
O cansaço haveria de passar, as coisas haveriam de se ajeitar. O dever dele estava cumprido.
Tudo ia ficar bem agora.

Munch - Det syke barn (1896)





"Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas." 

Rilke

















sexta-feira, outubro 07, 2016

ipê-branco

Quando João tinha 14 anos, foi trocado pela primeira namoradinha do Ginásio por um babaca que jogava futebol nas categorias de base da Portuguesa. Na mesma semana, sua mãe pediu divórcio de seu pai, o deixando para morar com ele, e sua irmã mais velha anunciou que estava de mudança para a casa do noivo, praticamente casados.
João viu, de repente, todas as mulheres de sua vida saindo de fininho, como se tivessem fugindo. Nesta semana misógina de sua vida, o único conforto foi devorar todas as músicas do Ira! que seu pai guardava LPs e CDs em baús, junto com uma penca de livros da biblioteca da família.
Ele não se envergonhava de chorar, enquanto lia Alexandre Dumas, Milan Kundera ou Lygia Fagundes Telles, pelo contrário, se fortalecia nisso.
Então quando fez 15 anos, na hora de cortar o bolo caprichosamente feito pela sua mãe numa tentativa falha de parecer que se importava com João, ele desejou nunca mais sofrer pela perda de uma mulher em sua vida. Ou pelo menos não se importar mais. Desejou ser sozinho, só ele e seus livros.
Com um sopro forte, a chama da vela se apagou em cima do bolo, enquanto duravam aqueles cinco segundos constrangedores entre o fim do “Parabéns” e a escuridão.

Havia um canto da rua onde ele morava quando garoto, que de jeito nenhum alguém poderia ir lá, porque era escuro e contavam histórias desagradáveis sobre aquele lugar. Pois bem, João chegou a conclusão de que sua vida amorosa, depois daquele aniversário de 15 anos, virou um lugar escuro e cheio de histórias desagradáveis, tal qual o canto da rua onde morou.

Aos 19 anos, seu pai faleceu. Ficou se perguntando se tal feito era em consequência de seu pedido de viver sozinho, uma vez que o velho era sua única companhia. A perda de seu velho significava uma vida inteira de saudades e arrependimento pelas coisas que não disse, que não fez. Era como uma penitência por não ter dado valor quando o tinha.
Acolheu toda a coleção de livros de seu pai e jurou aumentá-la. Foi trabalhar numa livraria na Avenida Ipiranga, perto de onde morava na Luz. Absorto nas mil coisas que planejava para si, não reparava em ninguém ao seu redor, vizinhos e porteiros sempre passavam em brancas nuvens, havia um número restrito de amigos nessa fase de sua vida, seu melhor amigo Hélio do primário e outros caras da escola.

Até que conheceu Ana, nova funcionária da livraria.
As mulheres eram para ele até então como se fossem um rolo compressor cheio de espinhos que passava por cima de seu coração. Mas só do seu coração. De todas as outras pessoas no mundo, não, as mulheres eram acalento. Eram um grande ipê branco que havia no jardim de sua escola, quando floria, lhe lembrava sua mãe. Mas não floria sempre.

A garota Ana tinha um ponto de vista bem maduro da vida pós-adolescência. Ela achava que não bastava se apaixonar. As pessoas deviam ter admiração e respeito pelo companheiro. Deviam ser fãs um do outro. João se apaixonou por ela, garota esperta, cheia de experiências para contar, algumas tatuagens, franjinha anos 70, roupas ora descoladas, ora vintages, batons vermelhos e na testa a bandeira da igualdade de gênero estampada. Ana jamais seria aquelas garotas de dramas baratos. Ana era forte. Linda, divertida.
João a queria. Queria que ela entrasse em sua vida, que conhecesse seu charmoso apartamento, queria que as cervejas depois do expediente fossem para sempre, queria cozinhar com ela e queria acordar com o sorriso dela ao lado. Mas claro que tinha uma parte de seu interior que sempre que o via se aproximando dela, corria aos ouvidos dizer "corra, é cilada, ela vai fazer você gostar dela e depois vai sumir" e outra parte que dizia "se você não for lá, vai envelhecer sozinho jogando dama no Sesc Pompeia, é isso que você quer?" .

Um dia a viu chorando na porta da livraria e então, como aquilo lhe incomodou, resolveu falar. Começou já se declarando e então Ana disse que não podia, não queria, ainda aos prantos. Era a primeira vez em um ano desde que conhecera que a via chorar. Ela disse que havia acabado de descobrir que estava grávida.

Ana sumiu. E João voltou ao seu casulo de livros que o mantinha em ponto morto.
Entrou numa banda, tocava bateria. Deixou barba e cabelos crescerem. Abriu um sebo com os montes de livro que acumulara ao longo da vida. Fez muitos, muitos amigos. Criou um estilo de vida descoladinho, buscava felicidade nas coisas simples. Era fotógrafo nas horas vagas, falava mandarim e só andava de metrô ou bicicleta. Curtia bares que tocavam música ao vivo, e conhecia todos do centro. São Paulo's lifestyle full time.

É claro que vieram outras garotas, algumas duradouras, outras passageiras. João procurava um pedacinho de Ana em cada uma delas. Um sorriso de dentes brancos, perfeitos, retos, sacanas. Uma pinta em forma de estrela que ela tinha no ombro. Os joelhos tortos, o som da risada. O estilo, os cabelos. Todas as garotas tinham algo que Ana tinha. Era uma forma de nunca a esquecer, porque talvez ela era a unica que o fazia crer que podia reverter o pedido que fez aos quinze anos e não perder mais ninguém que amava.

Todas as sextas feiras a noite, era regularmente o dia de ensaio de sua banda, que no sábado sempre se apresentava num bar na periferia. Ensaiavam sempre na casa de Hélio, o vocalista, que ficava na Aclimação. Hélio era seu amigo desde que a garota do primário o trocou pelo jogador da Portuguesa. Foi Hélio que lhe apresentou o primeiro cigarro, era Hélio que o aguentava todas as vezes que falava sobre sua mãe e irmã com ressentimento, que falava de Ana. Hélio era o cara. Mas ao longo dos anos, Hélio conheceu a Ana dele, uma professora chamada Rose, casaram e tiveram filhos, e além disso, Hélio envelheceu a ponto de ficar careca e meio barrigudo. Mas ainda era seu amigo de sempre, um ator engraçado que ganhava a vida com peças bem humoradas e alguns poucos programas de TV em canais pagos. Fazia algum tempo que o casamento de Hélio e Rose não estava indo bem, e seu amigo não conseguia se expressar sobre o que estava acontecendo exatamente. Era só uma apatia, uma indiferença. João sabia disso por cima, eram homens e amigos, não precisavam de protocolos para se abrirem um com o outro. Até que uma sexta feira antes do ensaio, Hélio informa a todos que não poderia fazer o ensaio em sua casa pois estava se separando de Rose.
Dados os devidos consolos entre os homens, fizeram uma noitada de bebidas e conversa para animar Hélio. E então, quando já ia tarde e todos já estavam bêbados falando alto, ouvindo Led Zeppelin e atirando garrafas pela janela, a campainha tocou. João havia alertado para o perigo de se fazer barulho em excesso. Abriu a porta desconfiado, pronto para dar uma boa resposta trépida a quem quer que fosse seu vizinho reclamão.

E então era Ana.
Um pouco mais velha, afinal, ambos tinham 41 anos agora. Mas era ela mesma, o sorriso branco, todo certinho, os joelhos tortos, a pinta em forma de estrela.
Ela arregalou os olhos, ele mal conseguia piscar. Ana virou as costas rapidamente e foi para seu apartamento, do lado oposto. João ainda bestificado, a seguiu, mas a porta bateu em sua cara grosseiramente.
Os rapazes, percebendo o clima que se seguiu, foram embora. Em seu apartamento, João dormira com a imensa vontade de bater no apartamento 508 de Ana.

Mas o que dizer 22 anos depois? Não conseguia pensar. Não conseguia acreditar que a primeira coisa que seu cérebro sugeria dizer pudesse ser real.
Como nunca tinha encontrado Ana no prédio antes? Ela estaria casada?
João percebeu que esses anos todos, moldou sua vida de forma que se um dia reencontrasse Ana, ela coubesse ali. E agora ela estava ali e já tinha uma vida.
Precisava fumar. Sair, tomar um café na padaria. Queria falar com ela, era sua chance, mas ao mesmo tempo sentia um medo danado.
Foi até o 508, mas não conseguiu bater na porta.
Desceu as escadas frustrado, e notou um degrau estragado. Anotou mentalmente que iria subir de elevador.
Então, como se o destino tivesse cansado da novela da vida privada de João, ele se viu no mesmo elevador que Ana. Ela mal respirava ao lado dele, e ele não parava de fita-la. E então o elevador deu uma bela chacoalhada e parou. Estavam presos.
- Eu não acredito que o elevador parou.
- E eu não acredito que te encontrei. Você se lembra de mim?
- ... João.
Ficaram se olhando alguns segundos longos.
- Você sumiu Ana. Eu sempre quis encontrar você de novo.
- Eu tive que sumir. Tive alguns problemas de família.
- Você disse que estava grávida.
- Pois é, eu acabei não tendo o bebê.
Ana abaixou o olhar certamente encabulada. Ambos estavam absortos em o que dizer, Ana parecia trêmula. Quando retomaram a conversa, falaram ao mesmo tempo, praticamente se sobrepondo:
- Eu sei que fui muito babaca do jeito que te falei as coisas que sentia sobre você, mas eu precisava falar porque você era a única pessoa pela qual eu nutria sentimentos, e você me fez fazer planos que eu jamais pensei ser capaz de fazer...
- Eu tive que sumir, mas eu nunca deixei de pensar em você, fui uma idiota em ter deixado um cara como você para trás, quis voltar, quis te achar mas agora eu tenho você...

João pensou em todos os momentos que quis ter Ana por perto, e agora ela estava ali. Para ouvir suas músicas exageradas, para cozinharem juntos, para fotografarem, para irem em shows. Para terem tatuagens. Para não fazerem nada. Para fazerem as cervejas depois do expediente serem eternas, junto com os sorrisos e a companhia um do outro.
Olhava para o semblante de Ana na sua varanda algum tempo depois, um grande calor invadia sua alma. O canto escuro de sua vida amorosa passara por uma reforma e parecia ser agora um grande ipê branco florido para sempre.



Tabebuia roseo-alba



"Árvore da vida
Árvore querida
Perdão pelo coração
Que eu desenhei em você
Com o nome do meu amor" 

Arnaldo Antunes - As Árvores

quinta-feira, outubro 06, 2016

Cavalo Manco


Eu estava levando um alicate de unha para afiar numa perfumaria, quando ouvi uma voz que puxou de dentro de mim uma série de lembranças. 

Vi um cabelo loiro a minha frente. 

Me lembrei do dia que a dona daquele cabelo loiro desmaiou na escola do ensino médio que estudávamos. Estávamos prestes a apresentar um seminário de biologia na escola, mas ela não havia estudado, então ficou nervosa e desmaiou, ou fingiu um desmaio.
A conheci no caminho de volta da escola, no ônibus que por sinal era o mesmo, mas eu descia no começo da linha e ela no ponto final. Eu perdi meu cartão de passagens do ônibus e ela achou e o guardou. Tinha 500 reais de créditos lá, daria pra ela usar e economizar o ano todo. Mas ela me achou e devolveu o cartão. Viramos amigas. 
Nos intervalos das aulas, saíamos para comer lanche na cantina. Raramente Dani tinha dinheiro para pagar, então sempre dividíamos um salgado. 
Ficávamos numa mesa observando os rapazes passando, pensando e comentando sobre quem seria legal, quem seria chato, quem era bonito, quem não era. Tínhamos o mesmo olhar. 
Antes de ir embora, almoçávamos a merenda da escola. Compartilhávamos a salada. Falávamos de boca cheia uma com a outra e ainda faziamos guerra de arroz no meio do refeitório, desse jeito conhecemos muitas pessoas que queriam participar da diversão e logo éramos um grupo. 
Mas mesmo no grupo, sempre prevalecia eu e Dani, sempre dentro dos ônibus de tênis destruídos, pé em cima dos bancos, ouvindo rap ou funk e falando muito palavrão. 
No começo eu não era assim, era retraída e calada, séria. E Dani era dorminhoca, quieta, chegava a parecer melancólica. Só que quando estávamos juntas, parecia que algo dentro de mim acordava, algo realmente muito íntimo e alegre. Ou então uma revolta ao mundo como ele era, compartilhada com ela. Parecíamos um par da mesma pessoa. 
Dani gostava de um grupo de forró muito famoso na época, chamado Calipso. Perto da minha casa havia um grande poster do Calipso que ela sempre que via pendurado na papelaria, brilhava os olhos. 
Em seu aniversário, apareci na escola com o poster e a presenteei. 
Havia um rapaz que pegava ônibus conosco todos os dias. Ele tinha uma barba no queixo, um sorrisão bem claro e alegre e um olhar misterioso que eu amava. Era moreno, forte, musculoso, gostava de bandas que eu gostava. Dani sabia dessa minha queda pelo rapaz, e ele nem ao menos olhava para mim, mas falava com ela. 
No meu aniversário, na saída da escola, Dani me deixou sozinha no estacionamento da escola onde o rapaz apareceu e me puxou num beijo. Meu primeiro beijo. 
Mas ela tinha um problema muito grande com aprendizagem. Tentei ajudá-la de varias formas mas ela repetiu de ano. E na segunda vez que ia repetir de ano de novo, seus pais a tiraram da escola. 
Nos afastamos drasticamente. Comecei a namorar o rapaz do primeiro beijo. 
Soube que Dani engravidara algum tempo depois. 
"Oi Ingrid". 
Oi Dani, minha amiga. 


SEGALL - "Duas amigas" - óleo 1914

domingo, setembro 25, 2016

Desculpe o transtorno, eu preciso falar do amor

Quando eu tinha 14 anos, descobri uma traição da minha mãe com outro cara.
Ela e meu pai eram casados desde sempre e meu pai era completamente apaixonado por ela.
Fazia todos os gostos dela. Era extremamente fiel, dedicado, bom esposo. Eu, que sempre tive problemas com meu velho, admirava demais isso nele. E ela, que eu sempre achei meio mimada mesmo sendo minha mãe, estava saindo com um cara da mesma idade dela e trabalhavam juntos. Descobri porque um dia durante a noite acordei e ouvi uma conversa muito sacana e picante do tipo que só poderia ser normal se fosse com meu pai. E não era, ele, que trabalhava a noite, não usava celular durante o expediente. Minha mãe achava que eu estava dormindo enquanto eu, do meu quarto ao lado da pequena saleta, conseguia ouvir todos os pormenores. Depois disso foi só espionar SMSs no celular dela enquanto tomava banho e meu pai já havia saído. Pimba!, lá estavam mensagens para um tal de Roberto que eu peguei raiva instantaneamente. Chutei a porta do banheiro gritando "Ô mãe! Sai aí que eu preciso falar com você!" e ela confessou tudo e implorou para que eu não contasse a ninguém. Estava em choque. Eu também.
Depois disso eu comecei a achar que esse negócio de amar alguém era a mais pura balela. Porque meus pais continuaram casados mas eu tinha certeza que eram casados por comodidade. Meus avós estavam ha 45 anos juntos, e brigavam mais que tudo. Que sentido faria para dois velhinhos de 70 anos estarem sós agora? Era muito mais cômodo permanecerem casados, mesmo depois de descobrirem que não existe essa de amor.
Analisei e cheguei a conclusão de que os casais ao meu redor não se amavam de verdade. Uma tia, irmã de minha mãe que tinha problemas em conseguir namorado, casou-se com um rapaz do interior do nordeste, para ela era comodo casar com ele porque tinha sido um dos poucos a se interessar por ela e para ele era vantajoso vir para uma cidade grande.
Minha irmã mais velha, jovem e insegura, com um garoto que da vida não sabia nada, que com minha família por perto tinha mais chances de conhecer coisas e lugares. Minhas tias todas tinham um fator que fazia do casamento delas algo mais obviamente comodo do que por amor.
Então, na minha conturbada adolescência, em que eu mesmo não acreditando na balela do amor procurava uma namorada, todos os casais seguiam para mim sendo superficiais.
Eu tentava construir coisas em comum com as garotas que me relacionava. Tentava construir essas coisas que os casais tem, códigos e piadas internas, dava presentes, mimava de todos os jeitos que eu conseguia, mas nunca sentia nada que fosse significativo o suficiente. Tentei por muito tempo ainda achar o que as pessoas chamavam de amor, mas não encontrava nem nos casais ao redor, nem em mim próprio a procura de alguém. Então desisti, e deixei que o tempo me levasse aonde quisesse.
Surgiram outros problemas para lidar. Alguns que não haviam solução, outros que a solução era bem difícil e consumia meu cérebro em tentar resolver. Eu evidentemente deixei de pensar em "achar um amor", como quando era adolescente. Tinha tanta coisa para eu fazer... Achava eu que esses problemas me fariam ainda menos atrativo para o alguém, se é que ele existia.
Depois de um tempo que havia desencanado de achar o amor, e mais tempo ainda que havia iniciado minha busca, achei. E então, como se fosse o refrão daquela musica do Arnaldo Antunes:
Mas mudou, você veio
Derrubando o mundo inteiro
Demorou, mas veio
Como a hora do recreio
Era tímida mas franca. Era tão linda. Era como se só existisse ela para mim. Eu queria ela para mim a vida inteira. Era diferente mas familiar. Eu me sentia uma rua esburacada e ela um paralelepípedo perfeito. Eu sentia que já a conhecia ha tanto tempo. Não tinha lugar mais gostoso para se estar no mundo do que em seus braços. Foi um corte na minha linha temporal, e um recomeço incrível.
E tão importante quanto amá-la, era saber que era recíproco. Eu via nos olhos dela, eu sentia na voz dela, sabia o quanto ela era a vontade comigo.
Sabia que agora o tempo poderia passar, porque eu ja tinha encontrado a minha outra parte.
Não me importava mais com o relacionamento dos outros terem ou não amor. Mas lamentava por eles não estarem sentindo o quanto era sublime.





segunda-feira, agosto 22, 2016

desajustados

Estava eu num curso de graduação superior que não gostava, cheio de gente na minha sala que não eram meus amigos e que nem eu queria ser deles.
Mas um dia conheci um cara de lá e a simpatia rolou na hora. Depois conhecemos mais gente que agregamos ao nosso grupo de desajustados. Alice, Denis, Vinicius, Janaína, eu e o impronunciável.
Alice era uma menina loira, de olhos azuis, de aparência feminina e delicada. Ouvia rap, andava de tênis de skatista, boné, camiseta do Corinthians e pra nossa idade, era a mais politizada de nós todos.
Denis era desengonçado, feio, coberto de espinhas, engraçado, divertido, descontraído e o alvo da zoação.
Vinicius era magro, cabelos longos e lisos, baixo e falava coisas desconexas, fazendo todos rir, era também um verdadeiro enciclopédia humana, sobre tudo ele sabia.
Janaína, era linda, inteligente mas não demonstrava, metida a pin up, a mais bem sucedida de nós, até mesmo por estar no fim do curso que o resto dos membros do grupo era ingressante.
E o impronunciável era um cara bem curioso e simpático. Que não se chamava impronunciável, claro. Se chamava João. Mas me acostumei a pensar que pronunciar o nome dele mesmo que mentalmente era ruim. Enfim, meia hora conversando com ele, e ele se interessaria pela sua vida como se te conhecesse há muitos anos. Era alto, magro, com traços de quem no futuro ficaria um pouco mais gordo. Cabelo liso escuro porém cabeça rapada. Pele clara, algumas espinhas, bochechas rosas, nenhum sinal de barba.
Todos tínhamos entre 17 e 23 anos. Todos odiávamos nosso curso na faculdade. Todos tínhamos críticas mordazes a sociedade. E no fim, nos completávamos.
Então, apareceu o Roger.
Não que o Roger tenha sido um problema, mas ele era demais para nós.
Ele era popular, todos conheciam e conversavam com o Roger. Todos. Da faculdade inteira.
Roger era bonito e descolado, era alto, magro, sorriso cativante, andava de um jeito peculiar, todos os caras queriam ser como Roger. Usava óculos e parecia ainda mais culto. Era um geek musical. Era inteligente e antenado. Era O cara.
E por sua proximidade com Vinicius, devido a debates longuíssimos sobre neurolinguística que ambos tinham as vezes, ele começou a se aproximar de nós, os desajustados.
Não era surpresa nenhuma que João e Janaína estavam juntos ocasionalmente. Mas não era nada sério, era uma brincadeira.
Da mesma forma que o grupo todo incentivava que rolasse algo entre eu e Denis, sem nem sonharem que eu era completamente apaixonada pelo impronunciável. Foram saber quando não éramos mais um grupo.
Roger então, cativou Alice, depois cativou a mim como amiga  e me tornei sua confidente. Depois cativou João e acabou por cativar Janaína.
E se apaixonaram perdidamente, e João não gostou nada disso.
E foi o primeiro racha em nosso grupo.
Eu era louca e secretamente apaixonada por João, e era confidente de Roger e de João.
Um dia estava eu e ele a ensaiar umas musicas para um festival de bandas universitárias que João havia me chamado para participar, dentro de uma sala que tinha uma mesa de ping pong, na faculdade. E entrou Roger e Janaína, sem perceber, aos beijos. João saiu da sala furioso e Roger foi atrás se explicar, e tive que separar uma briga feia entre os dois.
Depois disso, tive que ficar me dividindo entre ouvir as lamurias de Roger e os xingamentos do impronunciável sobre Roger.
Até que um dia, conversando com Alice sobre esta merda toda, ela disse que consertaria a briga dos dois.
Eu não sei o que ela fez, mas um dia, ao entrar na faculdade e ir para o lugar onde sempre ficávamos: o jardim de inverno de uma luminária só, vi Roger e João abraçados, chorando, se jurando como irmãos.

Eu mal sabia que aquele era o começo do meu fim. 


***esta crônica faz parte de um conjunto de crônicas que tratam dos mesmos personagens, todas identificadas com o marcador "Janeiro"***

quarta-feira, julho 27, 2016

A fuga do notívago

O cheiro fétido da rua com esgoto vazando enchia o nariz, mas depois de 15 minutos passava a ser “acostumável”.

Tinha uma vontade imensa, insubstituível mas não conseguia satisfazê-la. Eram três e meia da madrugada e ele estava no meio da rua. Andando em círculos, meio sem rumo. Insone.

Um grupo grande de mendigos dormia na praça a sua frente. Alguns poucos travestis faziam ponto do seus serviços oferecidos também na praça. A frente, revelado por árvores, aparecia o imponente prédio da Secretaria de Educação de São Paulo, com sua coloração em tom de amarelo parecendo feita de tijolos de ouro.

Fazia 21 graus, era Março de 2012.

Aurélio sentara num ponto de ônibus, tentava se concentrar no que queria estar fazendo naquele momento.

Claro, tinha muita coisa que podia estar fazendo. Mas ele queria estar com sua filha.

Apagou o quinto cigarro dessa noite, já fazia 3 horas que estava perambulando pela República. Já era a oitava noite não consecutiva que fazia isso, estava realmente com muita saudade de sua filha.

Ela tinha 4 anos, estava morando na Alemanha com a mãe dela. Nunca imaginou que o fruto de uma noite inconsequente fosse gerar um amor tão grande. Ela tinha a diastema igual a sua e covinhas como a mãe.

Fechou os olhos, viu ela brincando com uma penca de brinquedos que Aurélio guardava em sua casa para quando ela voltasse ao Brasil.

Um homem estava sentado na extremidade do longo ponto de ônibus que escolheu, mas parecia enrolado num cobertor e adormecido. Permaneceu de olhos fechados no ponto de ônibus, com as mãos no bolso e em pé.

Sentiu um tipo de paralisação do seu corpo, por um milésimo de segundo.

Algo havia mudado. Ouviu um zunido alto de vento. Abriu os olhos e estava num quarto, um grande pôster do Gummy Bear o saudou numa parede do lado esquerdo. Uma cama tipo dossel estava levemente iluminada no centro do quarto.

Era sua filha, ressonando, dormindo gostosamente em algum lugar da Alemanha. Sorrindo, acariciou sua bochecha.

Não entendia o que tinha acontecido mas ele estava realmente no quarto dela. Colocou a mão em seu próprio rosto, tocou uma espinha na testa e sentiu uma leve pontada de dor, o que provava que era real aquilo.

Abraçou sua menina, que acordou assustada no mesmo minuto resmungando “papai!”

Quando a largou, durante uma piscada, voltou a estar no ponto de ônibus da República.

Não entendia nada do que tinha acontecido. Mas sabia que era real, a imagem de sua menina ainda estava gravada na retina.



"Eu sei que quando anoitece
Nos teus sonhos também estremece
A vontade de fugir, então siga por ali
Vire aquela esquina e vamos partir"

terça-feira, julho 26, 2016

Paisagem Idiótica

Estava a olhar para uma paisagem que eu chamo intimamente de Paisagem Idiótica.

Lembrei de alguém que me contou que havia um lugar do mundo que as pessoas podiam escolher morrer. Não era eutanásia, nem suicídio assistido. Era assassinato mesmo, as pessoas que queriam morrer iam vendadas para um campo entre montanhas onde eram acertadas por um tiro certeiro. Era um método clandestino, as autoridades faziam vista grossa e tudo aquilo era um tipo de serviço social.

Quando me contaram isso, pensei na mesma hora na agonia que deve ser ir para um lugar esperar a morte.

Seria mais agonizante do que a tal paisagem?

Um mar de vidros e ar condicionados grudados na janela, com um pequeno recorte azul do céu que passava despercebido, enquanto a gente acha que viver é acordar e vir pro trabalho e ela passa na nossa cara todo dia.

Recentemente uma propaganda me chamou a atenção, ela falava da natureza implícita em nossas vidas sem percebermos, e como estávamos desperdiçando o espetáculo todo dia. O vídeo do comercial dizia algo como “embaixo do prédio, terra”. Os publicitários envolvidos nessa propaganda tinham noção de estar perdendo toda essa natureza hipervalorizada ao ficarem em escritórios criando algo voltado para alimentar o consumismo?

Queimei meus dedos na ponta de um cigarro, era o meu momento de descanso chegando ao fim.

Saí da janela do escritório, abandonei a paisagem.

De volta a mesa, problemas que eu não podia resolver. E nem queria resolver. Não eram meus. Porém, me garantiam salário no fim do mês.

Era como se depositassem um saco de 50 kg em cima dos meus ombros e me dissessem o tempo todo “não se mexa, você aceitou não se mexer quando topou trabalhar aqui”.

E todo dia, no fim do expediente, eu saía do trabalho com uma sensação mais leve de deixar o peso la dentro do escritório, mas ainda assim, dolorido por tê-lo aguentado sobre os ombros o dia todo. Era uma sensação feliz, o fim do expediente, mas era também meio triste. Era como se eu soubesse que não dava tempo de fazer muitas coisas até ter que voltar pro escritório no dia seguinte. E por achar que não dava tempo de fazer muitas coisas, acabava não fazendo nada.

Eu era inconformado com a Paisagem Idiótica.

Era a cobertura comercial de onde eu trabalhava, na Grande SP. Era uma vista desoladora de pessoas enjauladas, suponha que você visse um dia bonito numa imagem, e nessa imagem tivessem vários animais fofos e meigos em jaulas e gaiolas? Era essa minha sensação. “Mas Aurélio, e se os animais quiseram estar nas jaulas e gaiolas por terem comida garantida?”

Aí eu concluo de que é ainda mais triste, a Paisagem.

No metrô, silencio. Cada um com seu celular.

Quando era menino, eu achava que ser adulto era conversar com todo mundo, conhecer todo mundo, poder falar o que quiser com quem quiser. Porque eu sempre ouvia “não fale com estranhos” e achava que isso era só porque eu era criança. Ninguém nunca diz “não fale com estranhos” para adultos. Agora eu entendo o porquê.

O estranho é você.

Todo mundo se torna estranho.

Queria muito que fosse como eu achava que seria. Achava que ser adulto era legal, e de alguma forma, estava intimamente ligado a natureza, porque não conseguia viabilizar uma cena que não tivesse uma arvore, um ceu, um pedaço de terra.

Mas a gente passa de trem por algumas arvores e as vê gritando “pelo amor de deus, me dê atenção, eu sou a natureza” e acha normal encontrar tudo cheio de lixo.

No dia seguinte, de volta a paisagem onde eu sempre morro e renasço pronto pra morrer no próximo dia com meus 50 kg de problemas dos outros, eu cheguei à conclusão de que estamos sempre no limiar da morte. Como se todo dia pudéssemos ir pro lugar onde tomaríamos o tiro certeiro e antes do derradeiro fim, desistíssemos. Nós, os estranhos, alimentamos uma esperança igualmente estranha.

Como se soubéssemos que não tem jeito, que nada vai mudar nunca. Minha geração não conhece outra verdade quem não seja essa de trabalhar. Mas ficamos planejando quando um dia isso pode acabar.

Essa noite não consegui dormir. Fiquei variando de madrugada, sonhei que uma onda gigantesca açoitava a paisagem idiótica até destruí-la completamente, seus ar-condicionados despencando, as pessoas nas jaulas caindo fatalmente e eu observando tudo da janela do meu escritório, com um cigarro nos dedos.

Talvez essa fosse minha estranha esperança.


"Não tivemos Grande Guerra, não tivemos Grande Depressão. Nossa grande guerra é a guerra espiritual, nossa grande depressão é a nossa vida."


quinta-feira, junho 23, 2016

FACILITE O TROCO OU ENTÃO LEVA BALAS

– Deu R$ 5,20 senhor.
– Toma aqui uma nota de 10.
– Tem 20 centavos?
– N…n…não…
– Cara, é melhor que tenha…
– NÃO POR FAVOR CARA EU TENHO FAMÍLIA
– DÁ LOGO A PORRA DOS 20 CENTAVO
– EU NÃO TENHO
– AH ENTÃO VAI LEVAR BALA
– NÃO CARA POR F… (sons de tiros)
– …
– Da próxima vez, facilite o troco.



terça-feira, junho 14, 2016

Monólogo intimista sobre o capitalismo

Eu sentia uma raiva inexplicável desde os 11 anos, e nada neste mundo foi suficiente para suprimi-la ou consolá-la.

Não entendia porque algumas pessoas podiam ter coisas, comprar coisas que eu não podia ter. Quando criança, achava que a culpa era de meus pais que tinham dinheiro e não queriam comprar. Até que fiz aniversário uma vez, 12 anos acho, e pedi um Nike a minha mãe. E só então depois de ver o esforço que ela teve que fazer para me presentear com um tênis de 300 reais, é que notei que havia algo errado. Não era minha mãe. Não era o tênis. Não era o trabalho desvalorizado da minha mãe como professora, que pagava ralo demais.

Era que eu tinha que ter o tênis, e porque queria era complicado demais explicar. Toda aquela baboseira que muitos já sabem sobre se vestir com roupas de marca para mostrar que você é alguém, todo o blablabla da adolescência.

Mas não bastava desconstruir isso. Eu podia ter me tornado um adolescente de 17 anos que usava um tênis barato e popular e não dava a mínima para marcas. Mas esse lance todo de marcas foi só a ponta do iceberg.
Tinha amigos na mesma situação. Então percebi, 90% das pessoas que eu conhecia eram pobre. Não tinham como esbanjar dinheiro comprando um tênis da moda sem desfalcar dinheiro de algum lugar.

E a raiva continuava, como um animal rugindo dentro de mim.
Então, aos 17 entrei no primeiro emprego. E a ficha da realidade caiu como um elevador solto no fosso.

Então pra eu ter um tênis e ser socialmente aceito, devia passar horas sentado a frente de um computador realizando ligações e causando incomodo as outras pessoas... aquele emprego era errado por diversos motivos. Mas mesmo que eu listasse porque aquele emprego era tão ruim, a questão não era o emprego. A questão era porque trabalhamos e porque tínhamos que trabalhar, porque devíamos nos preocupar tanto em ganhar dinheiro e querer ter dinheiro, sabendo que nem se trabalhássemos a vida toda, não teríamos 1% do dinheiro que 1% da população tinha, e que havia uma grande quantidade de pessoas no mundo que jamais teriam nem ao menos as mesmas oportunidades que eu tinha pra ter a minha miséria.

Eu não podia ser grato a tudo isso. Não queria me conformar com a miséria, nem com a venda do meu tempo, disposição e juventude em troca de dinheiro. Eu queria trocar meu tempo por algo que fizesse sentido.

E seguia com raiva inflamada no peito. Berrando, vibrando e me avisando que um dia escaparia para fora de mim.

Diante de tanta revolta crescendo como um cogumelo na chuva, alguns outros pontos foram sendo esclarecidos, até virar um problema claro, óbvio e constante no meu vocabulário: o capitalismo.

Eu sempre me lembrava do Nike com certo peso na consciência, porque fiz minha mãe comprar um Nike na adolescência só para mostrar que tinha um tênis de marca. Ficava, naquela época, a manhã inteira assistindo TV, desenhos animados e seriados mostrando a vida estereotipada dos norte-americanos, seus Nikes, seus celulares, seus carros. Eu fui enganado a adolescência inteira. Fui seduzido para ser como eram aquelas pessoas, imaginando que se fosse como elas, os problemas que eu sentia passariam. A raiva que rugia, não existiria, porque aquelas pessoas não tinham a aparência de ter raiva dentro de si. Mas foi só ganhar o Nike pra perceber que era tudo mentira, depois do tênis eu ainda me sentia pior. Mais pobre, com aquelas pessoas norte americanas ainda mais distantes de mim, porque para mim, ganhar um Nike era um evento, para elas era comum.

Isso foi amadurecendo de uma tal forma durante o período do meu primeiro emprego, que comecei a idealizar uma vida sem dinheiro. Mas quanto mais idealizava, mais achava impossível conseguir, não com a TV, rádio e outdoors bombardeando o tempo todo de que você precisa de coisas que você não precisa e ter o corpo predeterminado por marcas, empresas e grupos de pessoas que não sabem nada sobre você e te tratam como número. E mesmo que com o tempo você se torne imune a propaganda, as pessoas ao seu redor não, e cobram de você a vida que o capital quer que você tenha.

Aos 20 anos fui vencido. Estava cursando uma faculdade cujo objetivo era formar pessoas para o mercado de trabalho, e claramente eram censurados os ensinos que se desviassem desse foco para algo mais culto e acadêmico. Eu estava lá, fazendo parte desta palhaçada, trabalhando e tendo medo de perder meu emprego, tendo medo de ficar sem dinheiro. As coisas que possuía, acabaram me possuindo. O desejo de tê-las também. A cobrança da família e do capital latejavam em minha mente. Me envolvi com movimentos sociais na esperança de amenizar a sensação de fracasso, e acredito que muitas das pessoas que conheci lá também tinha isso em mente. Mas, a burocratização de como esse tipo de coisa se dá hoje em meu espaço, não por acaso, era desmotivador.

Depois dessa experiência detestável e frustrante, onde muito se quer fazer, mas nada é feito de fato, a raiva, aquela que ficava rugindo e vibrando dentro de mim, alastrou.

As pessoas criam esperança onde menos parece provável. Em algum deus, por exemplo. Algo sobrenatural para salvar-lhes dos problemas que elas tem. Criam teorias baseadas em relíquias históricas, levam a sério algo porque alguém antes dela levou a sério e usam disso para justificar todos os atos que o capitalismo lhes obriga a fazer. Inventam, mentem e manipulam sem dó, porque todo mundo quer o perdão por ver tanta coisa absurda sendo feita e não estarem fazendo nada. Não é normal que 1% da população seja rica e possam ter seus Nikes enquanto o resto se mata para ter um, mas o capitalismo faz você achar que sim. E a religião justifica isso, ou perdoa. Mas todos sabemos que é tudo mentira, no interior de nossos corações. As religiões são uma mentira.

Em outros casos, há a alienação. Teóricos muito inteligentes já explicaram sobre isso muito antes de minha mãe me dar a luz. Mas a questão não é tanto a alienação de fato, porque acreditar que ainda hoje no séc. XXI há pessoas que não conseguem ver o que está acontecendo, que estamos nos matando por dinheiro, é impossível. Todos sabemos o que está havendo, sabemos que há algo que não deu certo, e que não devíamos nos conformar. Mas nos conformamos. E pior, deixamos que todos acreditem que nós não estamos vendo. Que nosso único interesse é o pão e circo. Pior que mentir para os outros, é mentir para si. E quando fingimos que não vemos as mazelas do capitalismo, estamos mentindo para nossa própria existência.

E mais recentemente, é fácil observar o que eu acho que é o pior caso de todos, que é quando, a balança dos sentimentos ruins fica mais pesada que a balança dos sentimentos bons, na relação entre as pessoas. O pior dos casos, é quando o indivíduo concorda com o estupro mental e financeiro do capitalismo. Quando apoia e se afirma militante ativo das causas capitalistas. Talvez já calejados de sentir a raiva batendo quando o consumismo vence, quando o desejo pelas coisas se torna superior do que a compaixão e o caráter.

Você não é o que você tem, você não é as coisas que compra. Falta entender que tudo no capitalismo é efêmero, o tempo é a única coisa que possibilita alguma riqueza. Cabe saber do que vale a pena ser rico.





Eu sou a constante especulação de Jack.

segunda-feira, junho 13, 2016

Esperando pt. 1

EXT. PONTO DE ONIBUS CHEIO DE UMA AVENIDA MOVIMENTADA, FIM DE TARDE


Dois homens de roupa social esperam seus respectivos ônibus em pé, sem se olharem e ambos olhando para a rua, no sentido de onde vem os ônibus.

HOMEM 1

Sabe, queria fazer algo significativo, que desse sentido a minha vida. Um emprego que mudasse a vida das pessoas, que fosse de fato importante!

HOMEM 2

E o que você está esperando?

HOMEM 1

O ônibus, e você?

HOMEM 2

Também...

terça-feira, maio 24, 2016

mais uma história de não-amor em São Paulo

Eu não me lembro como nem porquê puxei conversa com um senhor que catava latinhas. Era cinco da manhã, o primeiro ônibus do dia pra minha casa estava para passar e eu deveria manter a atenção.
Mas não resisti, achei que aquele senhor poderia ter um bom papo, talvez pelo bom gosto de se vestir usando All Star vermelho cano alto mesmo sendo simples e aparentemente, um morador de rua.
Disse que o All Star estava com ele há muitos anos, desde a época do divórcio.
Fiz a besteira (ou não) de perguntar “Que divórcio?”
E eis que o senhor começou a me contar uma história, talvez a sua, talvez ficção. E eu lhe dei atenção, talvez por estar bêbado demais para me negar a isso.
Ele me disse que a tinha conhecido na faculdade. Ele cursava Matemática e ela Letras “com ênfase em Sueco”, como fez questão de me lembrar.
“Se chamava Sandra, tinha um ar hippie. Sorriso bonito, delicada mas pragmática. Prática.”
“Então o senhor tem ensino superior?” o velhote fez um “o” completo com a boca, surpreso. “Mas claro que tenho meu filho, eu tenho mestrado na Bélgica, inclusive”.
Percebi logo que poderia ser verdade, uma vez que notei que o senhor não falava com muitos erros e tinha um porte diferente dos demais moradores de rua.
Continuou me contando que começara a namorar Sandra durante uma greve dos professores de sua faculdade. Ela era do movimento estudantil, naquela época, anos 70, ser do movimento estudantil geralmente era o mesmo que se dizer de esquerda. Ou seja, para a época: comunista.
Acendi um cigarro, ofereci, negou.
Se apaixonaram automaticamente, começaram a namorar ao mesmo tempo que cursavam o último semestre de seus cursos.

Após a formatura, começaram a se afastar gradativamente da política. Queriam executar seus planos, queriam constituir família. Mas ele tinha medo, Sandra é que pressionava. Eram de famílias digamos menos pobre que o resto do Brasil. Afinal, nem ele nem Sandra nunca haviam pago a faculdade com dinheiro de seus trabalhos, mas sim dos seus pais.
Ele arranjou emprego numa grande multinacional, fruto do contato de seu pai com diversos executivos e o próprio CEO da tal empresa de origem francesa. Em três anos nessa empresa, teve que se mudar para França, e aí não havia mais como adiar o casamento que Sandra tanto queria.
Casaram-se ainda no Brasil, tradicionalmente como gostava as famílias de ambos classe média.
Foram para França em 83, e não queriam saber mais de nada.
Sandra não trabalhava, mas também não precisava, ele provia todas as despesas da casa tranquilamente com o salário deste emprego.
Aprenderam francês juntos, aprenderam a viver confortavelmente em For Sur Mer, fizeram amigos, e Sandra engravidou em 1986, depois desses três anos muito confortáveis. Ele até queria voltar para o Brasil mas agora com essa gravidez, o melhor era continuar vivendo ali até que o bebê tivesse uma idade razoável.
A criança, menino, cresceu com nome de Edgard, sendo educado numa escola franco-brasileira que lhe permitia desenvolver tanto o português como o francês. Aprendeu tudo o que podia sobre as artes e era um exímio artista.
Neste momento meu ônibus passou, mas fingi que não vi e continuei a ouvir a história. Era mesmo improvável que o homem bem sucedido dessa história hoje tivesse catando latinha na Rua da Consolação. Então eu queria saber até onde ia.
O menino ainda mora na França, em Pertuis, próximo de onde cresceu com ele e Sandra. É artista plástico.
Pensei, e como pode deixar o pai neste estado, com idade tão avançada?
Continuou me contando a história, mesmo tendo percebido que algo me passava pela cabeça. Esse velho é bom, pensei.
Cinco anos depois do nascimento de Edgard, era hora de planejar a volta para o Brasil. A empresa pedia, a família concordava, então que voltasse.
Disse que veio no início de 1991 aqui em São Paulo para acertar detalhes de moradia. Trouxe Sandra e o menino. O casamento ainda ia bem.
Voltaram para a França depois entusiasmados com a mudança, a volta pra casa. E então Sandra descobriu que estava grávida de novo.
Adiaram longos e frios 6 anos de volta ao Brasil. A criança, menina desta vez, nasceu saudável, alegre e linda. Era o centro das atenções da família. Isadora, loura de cabelos finos e delicados, ficou com toda a beleza da família nos genes.
Eu vi nessa hora um lampejo louro nos cabelos sebosos do senhor, talvez ele tivesse sido apresentável um dia. Sem cheiro de sujeira, sem buracos remendados em sua blusa de lã.
O dia estava nascendo, era um domingo de manhã e ainda tinha gente estranha bêbada voltando das baladas.
Mas eu quis ouvir o resto da história, e o convidei para ir tomar um café numa padaria perto da República.
Uma vez na padaria, pingado e pão na chapa, me contou que nesses seis anos finais em For Sur Mer, resolveu estudar. Se sentia sufocado “aquela coisa que dá depois de 10 anos casados”. Então fez mestrado em Ciencias Econômicas e alguns MBA, em várias universidades pela Europa. Chegou a ficar 3 ou 4 anos fora, apenas estudando. Voltava para casa aos feriados e férias, ficava um pouco com a família, mas não sentia saudade. “Eu era frio, meu filho. Eu não ligava para eles, achava que meu dinheiro sustentando-os era suficiente”.

Quando parou de estudar, notou que havia perdido boa parte da criação de sua menina, uma parte importante do crescimento de seu menino e o pior de tudo, o amor de sua Sandra.
No início dos anos 2000, já de volta ao Brasil há 2 anos, morando confortavelmente em bairro nobre de São Paulo, ficou mais 7 anos forçando um casamento que não queria mais.
Trabalhava muito, viajava muito a trabalho, e perdia de propósito os momentos importantes com a família.
“De propósito”
“Porque de propósito?”
E me explicou que havia se enganado sobre Sandra. Que ela já não era mais a menina hippie de sorriso encantador. Ela era uma quarentona chata, com a bunda caída e que não saia de casa, não se vestia direito nem para si nem para ele, engordou, “enfeiou”, como fez questão de dizer.
Que babaca, logo pensei.
Em 2007, numa viagem a trabalho em Nova Iorque, conheceu uma arrumadeira num hotel que estava hospedado. Brasileira, imigrante ilegal.
Começaram a sair, ela era 15 anos mais nova que ele e isso parecia o máximo para ele.
Não sabe dizer se era apaixonado por essa. Mas se divorciou de Sandra, deixando-a com Isadora.
Essa moça, 15 anos mais nova, era simples, do sul, não era um poço de beleza e nem era culta como Sandra. Mas era o suficiente, cuidava dele e o fez sentir-se rejuvenescido. Mesmo que sua menina não gostasse dela. E nem ela de sua menina.
Um dia brigaram feio, a filha e a moça. Então depois disso perdeu contato com todos, só falava de vez em quando com Edgard que continuava na França.
E então, me disse que um dia a moça lhe pôs pra dormir e levou tudo o que tinha. Dinheiro, documentos, relógios, joias, absolutamente tudo. Passou bens para seu nome, tinha procurações falsas. Fez um esquema tão bem preparado, planejado há anos quem nem a aposentadoria ele conseguia provar ser sua.
Sem conseguir provar nada a respeito de sua verdadeira identidade, foi morar na rua.
Contou que o arrependimento por ter deixado Sandra recaiu sobre seus ombros de uma forma tão cruel, que ficou dois anos sem pronunciar nenhuma palavra. Achavam que ele era mudo. Mendigo e mudo.
“E como se recuperou?”
“Eu vi Isadora e Sandra saindo do hospital, ano passado. Isadora a levou. Meu peito quase explodiu!”
Disse que passou a acompanhar todas as idas das duas no hospital. “Ali no Albert Einstein sabe? Eu fico por ali agora.”
Perguntei se teria coragem de abordá-las. Ele disse que sim, e que estava catando latinha para conseguir algum dinheiro para ficar decente e falar com elas. Não queria que elas o vissem como um mendigo. Mas disse que havia 2 meses que não via as duas indo ao hospital e que tinha medo de que algo tivesse acontecido. “Sandra deve ter uns 70 anos agora. Estava bem velha quando a vi”
Percebi que seus olhos estavam marejados. Não quis imaginar o que haveria de acontecer a este senhor se Sandra tivesse morrido. Tirei uma nota de 20 do bolso e lhe entreguei. Dei dois tapas amigáveis em seus ombros e me despedi.
Lá fora, o céu azul bem claro, a poluição, as buzinas, dava o tom de normalidade paulistana. Eu não tinha uma boa sensação, mas não havia porque se preocupar, eu não era casado, eu não tinha Sandra. Meu ônibus passou, entrei.
Eu nunca mais saberia se Sandra estava viva, o amor da vida de um homem que eu nem sabia o nome, mas torcia pela história. E que história. 

sexta-feira, abril 29, 2016

Teoria do Céu


Você sabe que tem uma rotina chata e desgastante. Você tem plena noção de que se pudesse, nunca perderia seus preciosos dias dentro de um escritório fazendo coisas que não te dizem respeito.

Você sabe que gostaria mesmo era ver aquele sorriso que você ama, da pessoa que você ama mais, sabendo que aquela é uma imagem que você nunca mais vai se esquecer, aquela linha perfeita de dentes brancos te sorrindo, cuja a vontade, é a de ter todos os detalhes, todas as voltas daquele sorriso para si.

Mas aí você se dá conta de que na vida, o que mais há é contradição. E olha pro céu procurando a paz que precisa para formular suas conclusões sobre os momentos de frustração, procurando respostas, ou as perguntas certas, tentando evitar as verdades absolutas, tentando não lembrar, não pensar toda hora, se concentrar, e virar a cabeça pra baixo. Mas também é olhando pro céu que você mais se lembra, se flagra sorrindo sem querer lembrando do cheiro, do tom da voz numa risada, da sombra recortada numa luz fraca. É reconfortante imaginar que você não é o único a olhar pro céu, que o mesmo céu que te banha, é também o céu que cobre a pessoa a qual pertence o sorriso amado. É reconfortante pensar que mesmo longe, estão perto, que mesmo em mundos diferentes, ainda existe um céu que os cobre.

Para dias chatos comuns, para momentos ruins normais, olhe para o céu.


quarta-feira, abril 13, 2016

Quatro Carolinas Por Favor

Frio batendo na bochecha toda vez que a porta do trem abre. Mas do pescoço para baixo, o corpo é só um pedaço do enlatado que o trem se transformava as 6 da manhã de Francisco Morato sentido Luz, em São Paulo. Um amontoado de gente que faz com que a ideia de se mexer pareça algo ousado.
Já na estação da Luz, o amontoado agora ousa se mexer e ruma sentido qualquer uma das portas de saída, como bois criados em confinamento.

2014. Maio. Estava chovendo, levantei o capuz do moletom para não estragar a lobeca caprichada pro trabalho.
Passar no meio dos mendigos era rotina, precisar de dinheiro todo mundo precisa. "Não tenho moeda moça, se quiser eu tenho um pacote de bolacha aqui", abri a bolsa e entreguei o pacote de Triunfo na mão da criança que uma moça moradora de rua segurava enquanto me pedia dinheiro.
Pede dinheiro e ganha comida, devia estar feliz.

Cheguei na Padaria "Princesinha do Riskallah", vesti o avental, coloquei a touca cuidadosamente para não estragar o penteado, "bom dia Sr Jorge", "bom dia meu filho" liguei a chapa e comecei.
Pão de queijo, Sonho, Língua-de-sogra, Pão na Chapa, pingado com açúcar, não, sem açúcar, capuccino, café puro, Misto Quente, Pão com Mortadela, requeijão e Carolinas.

Carolina morava num prédio ali na frente da padaria e eu a atendia todo dia. Cheirosa, morena, alta, esperta. Pedia 4 carolinas e ia-se embora. Eu tímido, ficava olhando ela desfilar pela padaria todo dia sem conseguir articular qualquer coisa. Vez ou outra ela conversava com Seu Jorge, o dono da padaria, falava sobre política e rumava para Santa Ifigênia com um aroma de calêndula que ficava para trás.

Esqueceu o celular em cima do balcão naquele dia, peguei antes que qualquer um visse e enfiei no bolso da calça. Entregaria a ela pessoalmente, como uma missão.

A caixa da padaria, Dona Adriana, esposa do Seu Jorge, suspeitava que eu tivesse algum tipo de interesse em Carolina, porque sempre que ela ia embora eu ficava acompanhando com o olhar. Dizia ela "Sossegue menino, Carolina não é pro teu bico, se engrace com essas meninas que frequentam os bailes que você vai la na sua área".
Eu era chapeiro, negro e da periferia, frequentava baile funk e roda de rima, usava camiseta larga e mostrava a cueca. Não estudava mais porque tinha que trabalhar muito e contribuir em casa.
E uma moça poderia me rejeitar por ser assim, eu jamais entenderia.

Depois do trabalho na padaria, rumei pro segundo emprego, ainda com o celular no bolso,
Pouco antes de entrar no prédio da Contax, lá no Brás, olhei para ver se tinha alguma coisa, e em questão de segundos um menino veio correndo e tomou o aparelho da minha mão.  Joguei a mochila e saí disparado atrás do moleque em pleno horário de almoço abarrotado de carros parados na  Rua Piratininga. Ele entrou por uma viela, se escondeu numa casa muito pequena e bateu a porta, comecei a esmurrar a porta e nada. Saí, e mal sabia o que pensar, o que fazer, mas eu precisava pegar de volta o celular de Carolina. Pessoas entravam e saiam, a viela era uma pequena vila com varias casinhas humildes, um chão de cimento quebrado com um enorme esgoto aberto, coisas que já não eram novidades para mim. Comecei a interceptar as pessoas e elas se afastavam como se o ladrão fosse eu, mas, por deus, eu era a vítima!

Um homem se propôs a me ajudar. Alisava o bigode enquanto eu contava para ele como fui roubado, depois começou a bater na porta da casa onde estava o ladrão, chamando por um nome, "Pinote".
"Ô Pinote, saí aí vamos conversar, se não sair o moço vai chamar a polícia".  A porta abriu e saiu o ladrãozinho que agora eu já sabia que era chamado de Pinote. Não devia ter nem 14 anos ainda,  uma criança menina de uns 2 anos descalça e com roupas imundas, cabelo igualmente imundo, e um rapaz de uns 19 anos, parecido comigo, roupa larga, cueca a mostra, boot no pé, piercing na sobrancelha e um bigode fino na cara. Saiu gingando, não vi o celular.

A conversa foi longa, se é que poderia chamar de conversa. Varias frases como "Cê ta ligado que a fita é essa e o bagulho é doido" depois, o resumo: eu teria que pagar pelo resgate do celular, e o malandro era duro na negociação. Como se tratava de um celular caro, queria que eu pagasse uma parcela de um carnê de sua moto, e já vinha com o carnê no bolso.
Àquela altura, eu fodido e atrasado no trabalho, comecei a rir. Pagar pra malandro devolver o celular que ele roubou, mil dinheiros nisso?
Quando ri, o Pinote disse "Falei que ele não ia aceitar Dinho, vamo vender e cê paga o carnê".
Olhei para o senhor de bigodes, ele fez um gesto como "não vai ter jeito rapaz". Dinho pegou o celular do bolso "iPhone 6 né? acho que até sobra moleque" .
Meu sangue ferveu. Deixar malandro crescido me passar para trás estava fora de cogitação.
Desferi um soco no tal de Dinho e tomei o celular, em questão de segundos. Saí correndo pela rua, voltei pela Contax e vi minha mochila "graças a deus a mochila". Quando virei a esquina da Rua da Alegria, não vi ninguém atrás de mim.
Já não ia mais trampar no segundo emprego aquele dia, então que se foda, iría para a Luz e entregar o celular a sua dona.
Desci na Sé, fui até o Largo São Francisco e vi o sol se por. Era cedo ainda.
Será que Carolina estava preocupada? Qual seria sua reação quando eu o entregasse?
"Oi Diego, tudo bem? O que você faz por aqui essa hora? A Padaria já fechou não?"
"Sim Carol" (poderia eu chamá-la de Carol?) "Você esqueceu seu celular, toma ele aqui"
"Oh muito obrigada! Gostaria de entrar e tomar uma água" e pronto, aí era eu e a morena.
Rumei para a Luz novamente, com  o pensamento só nela. Metrô lotado, suor, gente cansada, preferi descer no Anhangabaú.
E que má sorte, a policia militar me enquadrou na saída da estação e revistou. E ofendeu. E achou o celular. E para minha surpresa, o celular estava com a tela trincada. Trincou e eu nem vi, como entregaria o celular para Carolina daquele jeito?
Gambé olhou para mim com deboche, depois falou para os outros, "pode liberar, esse aí roubou um celular todo estourado", "eu não roubei" disse. A resposta do bota-preta foi um tapa na cara e a tela do celular trincada ligada com a foto de um cachorro com um laço na cabeça de fundo, bem no meu rosto.
Saí revoltado, humilhado e fui para a frente do prédio que sabia ser onde Carolina morava.
Eu ia devolver o celular assim mesmo.
Subindo a rua, vejo Carolina a minha frente voltando do trabalho, dez passos de distancia. Grito seu nome, mais de uma vez, e ela parece não ouvir. Corro a sua frente e digo "Oi". Ela se assusta mas me reconhece.
"Oi Diego, ta tudo bem", diz preocupada.
"Oi Carolin-"
"Eu não me chamo Carolina, me chamo Samanta" me interrompeu, séria, me encarando. "Seu Jorge me chama de Carolina porque compro carolinas todo dia no café da manhã".
Meu pensamento era só um: eita. Mostrei o celular para terminar tudo isso logo. Ela olhou e voltou a me fitar. "Não é seu? Não esqueceu no balcão hoje cedo?"
"Não", e me mostrou seu celular em sua mão, inteirinho.
Olhei para o chão, pensei em todas as coisas que me ocorreram por causa daquele celular e balbuciei "Ah então beleza, vou embora então".

Virei e saí querendo nunca mais ver Carolina/Samanta na minha frente e decidido em parar de ser vacilão com as mulheres.

"Você não quer uma água?" disse a moça sorrindo. Eu sorri de volta e subi para seu apartamento.

Até hoje não sei de quem é o celular.